Dietas cetogênicas sob o olhar da endocrinologia clínica

Dietas cetogênicas sob o olhar da endocrinologia clínica

Nas últimas décadas, o avanço da ciência clínica trouxe à tona um velho conceito repaginado com roupagem bioquímica e apelo moderno: a dieta cetogênica. Como endocrinologista clínico com quase três décadas mergulhado em estudos metabólicos e prática hospitalar, confesso que raramente um modelo alimentar gerou tantos debates acirrados e dados clínicos empolgantes. Vamos, então, de forma clara, científica e sem histeria de aplicativos, entender o que a endocrinologia de fato pensa sobre a dieta cetogênica.

Entendendo a dieta cetogênica: mais que uma moda

A dieta cetogênica é uma estratégia alimentar caracterizada pela redução drástica na ingestão de carboidratos (< 10% do valor calórico total), aumento significativo dos lipídios (70 a 75%) e uma ingestão moderada de proteínas. Essa alteração forçada no fornecimento energético induz o organismo a mudar do metabolismo glicolítico para o cetogênico — onde corpos cetônicos, produzidos primordialmente no fígado, tornam-se a principal fonte de energia.

Pode parecer novidade, mas variantes dessa conduta alimentar já eram prescritas no tratamento da epilepsia refratária desde os anos 1920. O que mudou? Hoje, a cetogênica ganhou espaço na endocrinologia metabólica por seu impacto no peso, na glicemia e na inflamação sistêmica.

Mas afinal, por que o corpo produz corpos cetônicos?

Durante uma privação significativa de carboidratos, há queda nos níveis de insulina e aumento do glucagon. O fígado, então, começa a oxidar ácidos graxos provenientes do tecido adiposo, gerando acetil-CoA. Quando este excede a capacidade do ciclo de Krebs, forma-se acetoacetato, β-hidroxibutirato e acetona — os famosos corpos cetônicos. Eles “alimentam” cérebro, músculo cardíaco e rins, poupando glicose endógena.

Traduzindo: nosso corpo foi desenhado para conviver com a intermitência alimentar. Viver em cetose, desde que controlado, não é um estado de emergência, mas de adaptação metabólica.

Efeitos comprovados na endocrinologia clínica

Simulando um raciocínio clínico, vamos analisar os impactos da dieta cetogênica nas principais síndromes do consultório endocrinológico:

1. Obesidade e resistência insulínica

Estudos randomizados (inclusive meta-análises) indicam que a cetogênica proporciona perda de peso superior ou semelhante a outras dietas hipocalóricas nas primeiras 12 a 24 semanas. A saciedade elevada promovida pelas gorduras, a redução do apetite mediada pelos corpos cetônicos e a estabilização glicêmica explicam esses resultados.

Além disso, há melhora dos marcadores de resistência insulínica como o HOMA-IR — o que, na prática, significa um metabolismo mais responsivo à insulina endógena.

2. Diabetes tipo 2

Em pacientes selecionados, especialmente obesos e diabéticos mal controlados, a dieta cetogênica demonstrou potencial efetivo na redução da hemoglobina glicada, diminuição da dependência de medicações e, em alguns casos, remissão parcial da doença. Claro, isso exige acompanhamento médico rigoroso, ajustes na dose de insulina e sulfonilureias e critério na indicação.

3. Dislipidemia e marcador lipídico

Agora, um ponto que divide opiniões: os lipídios plasmáticos. Em alguns pacientes, uma dieta rica em gorduras saturadas pode elevar o LDL colesterol. Contudo, muitos estudos mostram que o perfil de partículas LDL se desloca de pequenas e densas (aterogênicas) para grandes e fofas (menos perigosas), enquanto o HDL sobe e os triglicerídeos despencam.

Ou seja, os marcadores clássicos alteram-se, mas o risco cardiovascular depende de como você interpreta a bioquímica. Avaliação independente de ApoB, Lp(a) e colesterol não-HDL pode ser mais relevante nesses casos.

Quando a cetogênica torna-se um problema

Nem todo corpo aceita bem uma vida com manteiga e abacate. Em minha prática clínica, observo que alguns pacientes apresentam efeitos adversos significativos, como:

  • Cetoacidose (em diabéticos tipo 1): contraindicação absoluta;
  • Náuseas, constipação e halitose nos primeiros dias (“gripe cetogênica”);
  • Deficiências de micronutrientes, especialmente se houver baixa variedade alimentar;
  • Perda de massa muscular se a proteína for excessivamente restringida;
  • Elevação indesejada de LDL em alguns casos genéticos (hipercolesterolemia familiar).

Sendo assim, a individualização terapêutica é regra de ouro. Cetogênica pode ser uma ferramenta clínica — mas não é panaceia nem modelo eterno.

Riscos de longo prazo e o papel do acompanhamento médico

Faltam estudos robustos de longo prazo (> 3 anos) para garantir com segurança os efeitos da dieta cetogênica crônica na saúde. No entanto, sabemos que cetose prolongada sem controle pode:

  • Aumentar os níveis de cortisol (resposta ao estresse metabólico);
  • Sobrecarregar fígado e túbulos renais, especialmente em pacientes predispostos;
  • Alterar o microbioma intestinal devido à baixa ingestão de fibras solúveis;
  • Interferir na saúde óssea por acidose metabólica leve persistente.

Logo, a dieta cetogênica deve ser periodicamente reavaliada e ajustada. Em alguns casos, é possível utilizar estratégias sazonais: ciclos cetogênicos de 8 a 12 semanas, intercalados com fases de maior ingestão de carboidratos integrais, mantendo os benefícios metabólicos sem os riscos crônicos.

Considerações finais: nem vilã, nem heroína

Como endocrinologista clínico, vejo a dieta cetogênica como uma ferramenta metabólica eficaz em contextos bem definidos, especialmente onde o controle de peso, insulina e glicose são prioritários. Mas deve ser aplicada com inteligência, acompanhamento profissional e respeito à individualidade metabólica do paciente.

É preciso sair do discurso dualista — esse tipo de alimentação não é milagrosa, assim como também não é danosa por princípio. Doses, contextos e propósito terapêutico é que definem o sucesso (ou o fracasso).

Sugiro que qualquer pessoa interessada nesse modelo alimentar procure um endocrinologista clínico com experiência em nutrologia antes de iniciar. Lembre-se: emagrecer sem inteligência metabólica é como consertar o freio do carro cortando os cabos — pode parecer que funciona, mas só até a primeira curva.

Referências clínicas e recomendações de leitura

  1. Effects of Ketogenic Diets on Cardiovascular Risk Factors
  2. American Diabetes Association — Position on Low-Carb Diets
  3. Ketogenic Diet and Weight Loss: 12-Month Clinical Review

Com informação, ciência e presença no consultório, promovemos saúde de verdade. E cetogênica, quando bem indicada, pode sim fazer parte desse arsenal eficaz contra a obesidade e distúrbios metabólicos. Sem radicalismos. Sem achismos. Com ciência.

Publication date:
Author: Dr. Álvaro Menezes da Silva
Médico endocrinologista com mais de 35 anos de experiência, professor universitário e pesquisador com reconhecimento internacional na área de metabolismo e obesidade. Defensor da integração entre ciência, cultura e bem-estar, desenvolveu abordagem inovadora de reeducação alimentar com ênfase comportamental.

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