‘Não era só sobre peso, era sobre dor’: o impacto do racismo no processo de emagrecimento de mulheres negras

Não era só sobre peso, era sobre dor: o impacto do racismo no processo de emagrecimento de mulheres negras

Por muito tempo, quando uma mulher negra dizia “quero emagrecer”, o mundo ouvia “quero caber no padrão”. Mas, na minha escuta atenta, entre uma xícara de café e um desabafo sincero, eu percebo algo mais profundo: não é só o corpo que pesa, é o olhar do outro. É o julgamento silencioso, o medo de ocupar espaço demais — e não apenas no manequim.

Eu sou Cláudia Regina dos Santos, filha de Dona Marinete, mulher preta, nordestina, e filha de mulheres que sempre carregaram mais que suas próprias histórias. Neste artigo, vamos mergulhar em um tema urgente, mas pouco explorado com a profundidade que merece: como o racismo impacta — emocional, mental e fisicamente — o processo de emagrecimento de mulheres negras no Brasil.

O corpo negro ainda incomoda

Pegue um dia, vá à praia e observe. Corpos brancos expostos são celebrados. Corpos negros? Tolerados, quando não silenciados. A mulher negra, desde cedo, aprende que seu corpo é “demais”: quadril demais, bunda demais, força demais. Ser “demais” se torna uma ameaça. E o peso? Ele vira uma das únicas coisas que tentamos diminuir, acreditando que isso vai reduzir também as dores que carregamos.

Mas se engana quem pensa que o emagrecimento é apenas uma jornada cheia de determinação. Para muitas de nós, é uma travessia cheia de ruídos: falta de apoio médico, olhares atravessados nas academias, falta de representatividade nas propagandas de alimentação saudável e, principalmente, uma pressão estética que não fala com a nossa realidade.

Por trás da compulsão alimentar, a fome ancestral

Conversando com a Ana Paula, 37 anos, professora, mãe solteira e guerreira como tantas outras, ouvi sua história marcada por um ciclo de dietas seguidas de crises de compulsão alimentar. Ela me disse: “Cláudia, eu achava que era só gula. Só que não era fome de comida. Era a dor da rejeição, da invisibilidade, da solidão. E tudo isso tem nome: racismo”.

Pare para pensar: quantas vezes, diante do estresse, da sobrecarga, da desumanização cotidiana no trabalho e nas relações pessoais, nós nos voltamos para a comida como afeto? Somos ensinadas a engolir o choro, a aguentar tudo calada — e, no fim do dia, só a comida parece nos dar alguma sensação de conforto.

Não se trata de vitimismo, como alguns acusam. Trata-se de dar nome àquilo que o silêncio faz questão de esconder. Para muitas mulheres negras, comer é também um ato de resistência. E emagrecer, quando feito na pressão de um padrão branco, é mais uma forma de apagamento — mas, agora, voluntário.

O racismo institucional e a negligência médica

Você já foi a um nutricionista público que disse “você precisa é se esforçar mais” sem nem perguntar o que você come? Já ouviu de uma profissional da saúde que “mulher negra tem o osso mais largo mesmo”? Eu já ouvi. Muitas vezes.

Essa negligência médica é reflexo de um racismo estrutural que desumaniza o corpo negro. O cuidado com a saúde da mulher negra é frequentemente fragmentado, apressado ou simplesmente inexistente. A falta de estudos com recortes raciais sobre nutrição, metabolismo, hormônios e saúde emocional também contribui para protocolos que não funcionam com a nossa realidade.

O que precisamos repensar, juntas

  • Planos alimentares que respeitem a culinária ancestral: tirar o arroz com feijão da dieta de uma mulher negra é arrancar dela um elo afetivo poderoso. O peso não está no feijão com arroz, mas no desconhecimento cultural do profissional.
  • Atividades físicas que acolham nossos corpos com empatia: academias ainda são espaços onde o padrão reina. Precisamos de mais espaços seguros para corpos que não querem apenas afinar, mas também florescer.
  • Cuidar das feridas emocionais antes de pesar na balança: a terapia, o autocuidado, a autoestima e o fortalecimento da identidade são peças fundamentais no emagrecimento sustentável.

Emagrecer pode ser um ato de autocuidado — não de apagamento

Eu mesma demorei anos para entender que emagrecer não seria me tornar “menos preta”. Já sofri quando ouvia “Cláudia, você emagreceu e ficou linda!” como se eu não fosse linda antes. Já chorei sozinha pensando que talvez com 10 quilos a menos eu seria mais abraçada, mais aceita, mais promovida.

Mas quando comecei a perder peso cuidando da minha mente, da minha ancestralidade e da minha história, percebi o verdadeiro sentido do autocuidado. Não foi para agradar ninguém. Foi para me ouvir. Para me libertar do peso que o mundo colocou em mim — e não daquele que a balança marcava nas manhãs de segunda-feira.

Inspirar, sim. Pressionar, nunca.

Querida leitora, se você chegou até aqui, saiba que essa conversa é só o começo. A jornada do emagrecimento da mulher negra não deve ser romantizada nem transformada em regra. Algumas vão emagrecer e encontrar liberdade. Outras, vão preferir permanecer com seus corpos do jeito que são e encontrar liberdade do mesmo jeito — e tá tudo certo.

Meu convite é simples:

  1. Questione os padrões que te machucam.
  2. Respeite o tempo do seu corpo e do seu coração.
  3. Cerque-se de pessoas que não pedem sua diminuição para te amar.

Não era só sobre peso. Era sobre dor. Mas, hoje, também pode ser sobre transformação, reparação e amor. Amor-próprio digno, profundo, capaz de curar aquilo que nem nossas mães puderam nomear.

Finalizando com força e afeto

Se você é uma mulher negra e está nessa jornada de transformação do corpo, da alma e da história — saiba que você não está sozinha. A sua leveza é direito seu. E se algum dia te disseram que pra ser aceita você precisava pesar menos, escureça essa ideia.

Mais que um corpo, você é herança, potência, raiz e asa. E quem carregar tudo isso não precisa encolher para caber no mundo — o mundo é que precisa crescer pra caber em você.

Publication date:
Author: Cláudia Regina dos Santos
Jornalista investigativa com mais de 20 anos de atuação, especializada em saúde e alimentação. Com estilo empático e engajado, destaca questões sociais e estruturais, especialmente ligadas à população negra e periférica. Usa linguagem próxima e acessível para humanizar dados e estatísticas.

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