Ela trocou refrigerante por suco de umbu: os bastidores da mudança alimentar na periferia de Fortaleza

Ela trocou refrigerante por suco de umbu: os bastidores da mudança alimentar na periferia de Fortaleza

“Quem é da periferia sabe que o que chega na nossa mesa não é só comida. É sobre escolhas, é sobre resistência e, muitas vezes, é sobre sobrevivência.” Foi assim que Dona Marinalva, moradora do bairro Bom Jardim, em Fortaleza, começou a me contar sua história. Sentadas na calçada, ao som dos meninos jogando bola e de um forró que vinha da casa ao lado, falamos sobre o que parecia uma simples mudança: ela trocou o refrigerante por suco de umbu. Mas, como tudo por aqui, não foi tão simples quanto parece.

De litro em litro, o açúcar foi virando vício

Há dez anos, Marinalva se acostumou com o ritual da garrafa PET de dois litros. “Era um vício, minha filha! Eu almoçava com refrigerante, lanchava com refrigerante e de vez em quando até jantava com aquilo.” Ela se referia ao refrigerante de cola, aquele preto básico que parece ser o mascote dos lares nordestinos. “Era barato, era gostoso e sustentava. Ou assim eu pensava.”

Mas os sintomas foram aparecendo: fadiga constante, dores de cabeça, os exames começaram a apontar índices alterados. “Foi quando a médica falou: ‘dona Marinalva, o açúcar tá matando a senhora.’” E quem é que quer escutar uma coisa dessas? Ainda mais quando já se tem tanto para aguentar.

O acesso à alimentação saudável ainda é um privilégio

No Bom Jardim, como em outras periferias de Fortaleza, frutas não faltam. O que falta é estrutura para transformar essas frutas em alternativas reais. “Umbu tem de monte por aqui, mas ninguém ensina a transformar ele num suco que dure na geladeira. A gente nem tem geladeira boa, muitas vezes.”

A alimentação saudável vem embalada num discurso gourmetizado que exclui as comunidades que mais se beneficiariam dela. “A gente cresceu achando que refrigerante era coisa de quem tinha, de quem podia. O suco da fruta era coisa do mato. Não tinha o mesmo valor. Agora eu vejo como a gente foi enganada.”

Por que umbu?

O umbu é uma fruta típica do semiárido nordestino, resistente, barata e cheia de nutrientes: rica em vitamina C, antioxidantes e com pouquíssimas calorias. E ainda por cima, refrescante. “Quando eu bati o suco pela primeira vez, menina, quase chorei. Era azedinho, docinho, com gosto de infância. Mas o melhor mesmo foi quando meu exame deu normal depois de três meses tomando suco no lugar do refrigerante.”

Primeiro vem a saúde, depois a autoestima

Marinalva não é nutricionista, nem influencer. Ela é auxiliar de serviços gerais e mãe solo de três filhos. A mudança alimentar veio pela saúde, mas o impacto foi além. “Eu comecei a me sentir melhor, a acordar mais disposta. Perdi sete quilos em dois meses, só tirando o refri e colocando suco de fruta no lugar.”

Mas o mais impressionante foi a transformação emocional. “Eu passava dias cansada, sem querer fazer nada. Agora eu acordo mais animada. Até minha pele clareou um pouco. Agora as vizinhas perguntam o que eu tô tomando pensando que é remédio caro. Eu digo: é umbuzada!”

Criação de uma cultura alimentar periférica

Marinalva passou a ensinar outras mulheres da rua a fazer suco de umbu, cajá, graviola, manga. “A gente se junta no sábado, cada uma traz uma coisa. Fazemos mutirão de suco. Já teve dia de virar quermesse!” O que começou com uma garrafa de refrigerante a menos virou movimento.

Outras mulheres, outras histórias

  • Rosa, 58: decidiu trocar o lanche da tarde (bolo com refrigerante) por tapioca e suco de caju. Perdeu medidas e viu sua pressão arterial estabilizar.
  • Camila, 26: mãe de duas crianças, cortou os sucos de caixinha e passou a fazer polpas em casa. “Além de economizar, meus filhos agora adoram quando me veem batendo frutas.”
  • Leninha, 44: passou a congelar garrafinhas com sucos naturais e vende na rua. “É renda e é saúde. Eu vendo o que me curou.”

Saúde como ato político

Quando uma mulher preta e periférica decide parar de consumir um produto ultraprocessado e começa a se alimentar do que a terra dá, ela está fazendo mais do que cuidar da saúde. Ela está rompendo narrativas coloniais sobre nutrição, status e valor social da comida.

“Eu não sou nutricionista, né? Mas eu sei o que me fez bem. Eu sei o gosto da fruta batida no liquidificador velho, eu sei a economia no bolso. E sei como transformou minha vida.”

Como replicar a mudança alimentar em comunidades como o Bom Jardim

  1. Educação alimentar nas escolas. Ensinar desde cedo sobre os nutrientes das frutas regionais pode desconstruir os mitos sobre o valor do industrializado.
  2. Feiras orgânicas e acessíveis. Criar parcerias com produtores locais para facilitar o acesso à fruta in natura.
  3. Cursos nas comunidades. O SENAC, universidades e ONGs podem promover oficinas de sucos, polpas e conserva caseira.
  4. Valorização da cultura alimentar local. Mostrar que umbuzada, graviolada e sucos de manga batida têm tanto valor quanto qualquer bebida engarrafada no shopping.

Uma mudança simples, uma revolução silenciosa

Nem toda revolução vem com faixas e megafones. Às vezes, ela vem num copo de suco gelado, servido no copo de requeijão, numa calçada quente de Fortaleza. Marinalva trocou o refrigerante por umbu, mas o que ela ganhou foi muito mais. Ela ganhou energia, autoestima, influência positiva nas outras mulheres da comunidade e a certeza de que ela, com uma simples escolha, pode mudar o curso de sua saúde e da de quem está à sua volta.

Que o exemplo de Marinalva inspire não só outras mulheres a se reaproximarem da terra e de seus sabores, mas também inspire políticas públicas que enxerguem a periferia como espaço de saberes, potências e vozes legítimas. Porque a saúde começa na escolha — e a escolha começa pelo que colocamos no copo.

Publication date:
Author: Cláudia Regina dos Santos
Jornalista investigativa com mais de 20 anos de atuação, especializada em saúde e alimentação. Com estilo empático e engajado, destaca questões sociais e estruturais, especialmente ligadas à população negra e periférica. Usa linguagem próxima e acessível para humanizar dados e estatísticas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *