‘Eu queria caber no metrô sem me esconder’: o desejo invisível de muitos corpos grandes nas grandes cidades

‘Eu queria caber no metrô sem me esconder’: o desejo invisível de muitos corpos grandes nas grandes cidades

Era uma manhã comum no Terminal Sé, em São Paulo. A multidão aguardava a composição das 7h13, como sempre lotada, quente, barulhenta. Entre elas, estava Iara, 38 anos, analista de conteúdo e moradora da periferia leste da cidade. Ela respirou fundo, como quem se prepara para mais um dia de luta — mas não pela jornada de trabalho. A batalha de Iara começa antes do ponto de ônibus e não termina ao bater o cartão. Ela, como milhares de brasileiras, vive num corpo grande. E, antes mesmo de chegar ao trabalho, já enfrenta olhares, piadas murmuradas e um dos maiores desafios urbanos para quem tem corpos fora do “padrão”: caber nos espaços.

O apertado espaço público e os corpos que transbordam

“Eu queria caber no metrô sem me sentir culpada. Sem precisar prender a barriga. Sem me encolher”, desabafa Iara. Não é sobre vaidade e nem sobre conforto. É sobre o desejo legítimo de existir em um espaço que negue a humilhação diária. “Tem dia que nem é o cansaço do trabalho que me derruba. É a vergonha de saber que alguém vai torcer o nariz quando eu entrar no vagão”, completa ela.

O transporte público, projetado para corpos menores e “padronizados”, raramente contempla quem tem sobrepeso ou obesidade. Os assentos são estreitos, os vãos entre barras metálicas e portas são insuficientes, e as catracas, muitas vezes, representam um obstáculo constrangedor. A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik já discutiu isso diversas vezes: o espaço urbano é desenhado para corpos normativos, com pouca empatia pelas diversidades físicas existentes.

“A cidade parece que quer expulsar a gente”, diz Iara. Ela prefere fazer trajetos longos de ônibus, mesmo com baldeações, só para não passar o nervoso do metrô. “Pelo menos no ônibus eu consigo escolher onde sentar ou ficar de pé. No metrô, sou jogada contra os outros corpos, como se eu fosse invasiva só por existir”, explica.

A vergonha aprendida e o medo de ocupar espaço

Durante nossa conversa, Iara ri algumas vezes — um riso guardado, contido. Sabe contar sua história com humor, aquele remendo na dor que nós, mulheres brasileiras, aprendemos desde cedo. “Quando era adolescente, evitava sentar no banco do fundão do colégio, porque ele tinha uma divisória de plástico. Uma vez fiquei presa ali. Me chamaram de ‘estátua do multiplicador’, porque parecia que eu tava duplicando o tamanho do assento”, conta ela, disparando uma risada nervosa que não esconde o desconforto da lembrança.

Esse tipo de lembrança não é incomum. Em grupos de apoio online, como fóruns de gordofobia no Facebook e perfis no Instagram, relatos semelhantes surgem diariamente. São dezenas de pessoas que lutam não apenas contra o preconceito, mas com a autopercepção — ter que pensar onde sentar, como cruzar a catraca, se vale a pena pegar uma calça jeans ou ir de legging pra economizar constrangimento no ônibus.

“A gente aprende a não ocupar espaço. Literalmente. Aprende a pedir licença o tempo todo, a se desculpar pela nossa existência. E aí, aquela frase da autoajuda — ‘ocupe seu lugar no mundo’ — soa quase ofensiva. Em qual lugar?, porque até no banco do ônibus, o meu já é demais”, diz Iara.

Quando a cidade também emagrece você

Esse processo lento de encolher não é só físico. É subjetivo. Os espaços excluentes criam subjetividades envergonhadas, silenciosas, e muitas vezes, adoecidas. A psicóloga Janaina Silveira, especialista em autoestima e imagem corporal, explica: “Ser confrontado com a inadequação cotidiana do corpo produz um sofrimento passivo, sutil e cumulativo. A pessoa vai se retraindo em si mesma, achando que ela é o problema, quando na verdade o problema é o meio que não foi feito para ela.”

E isso não acontece só no transporte. É nos provadores, nos restaurantes de cadeira fixa, nas escadas estreitas de prédios antigos, nos banheiros minúsculos de escritórios. É ir ao médico e ouvir que tudo se resolve emagrecendo. É não encontrar uniforme da firma do seu tamanho e ter que mandar fazer por conta própria. A cidade parece de todos — mas não acolhe a todos.

Representatividade não basta. Acessibilidade de corpos também é direito

É importante reconhecer os avanços culturais que vêm acontecendo. Campanhas publicitárias começam a usar modelos plus size com mais frequência, algumas marcas adaptaram os tamanhos, estamos vendo mais influenciadoras gordas na mídia e nas redes sociais. Mas essa visibilidade ainda é de superfície. A estrutura permanece a mesma — do banco do metrô ao botão do blazer tamanho 46.

Não basta representatividade estética. É preciso acessibilidade física e social para corpos gordos. Isso inclui mudar os critérios urbanísticos, ampliar assentos em locais públicos, revisar equipamentos de segurança (como cintos de avião e coletes em atividades esportivas), e promover debates sobre inclusão que não passem pela responsabilização da pessoa, como se tudo que ela precisasse fazer fosse “ter força de vontade”.

“Não quero aplausos por caber. Quero respeito por existir.”

Iara encerra nosso papo de forma direta, com uma clareza que vêm das vezes em que sentiu as costas doerem por passar 4 estações segurando a respiração num espaço folgado demais para ser injusto. “Eu não quero um tapete vermelho. Só queria andar na cidade sem pedir desculpa por ocupar o lugar que eu ocupo. Não quero que a cadeira seja como meus sentimentos: comprimida pra caber”, diz ela, com um sorriso doce, mas firme.

Mudar o cenário exige coragem coletiva. De gestores públicos, empresas, profissionais da saúde, urbanistas. E também de nós, como sociedade, ao decidirmos que cuidar do outro não é apertá-lo até ele sumir, mas alargar os espaços onde a vida possa acontecer. Respeitar corpos diversos é respeitar a diversidade da experiência humana.

Na próxima vez que você estiver no metrô, talvez veja alguém respirando fundo antes de entrar no vagão. Pode ser só ansiedade matinal. Ou pode ser Iara, lutando mais uma vez para caber — não no espaço, mas na narrativa onde todo corpo tem direito de ser protagonista.

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Author: Cláudia Regina dos Santos
Jornalista investigativa com mais de 20 anos de atuação, especializada em saúde e alimentação. Com estilo empático e engajado, destaca questões sociais e estruturais, especialmente ligadas à população negra e periférica. Usa linguagem próxima e acessível para humanizar dados e estatísticas.

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