Chá de hibisco e rodas de conversa: como um grupo de mulheres negras emagreceu apoiando umas às outras

Chá de hibisco e rodas de conversa: como um grupo de mulheres negras emagreceu apoiando umas às outras

Num salão comunitário de chão simples, paredes grafitadas com sonhos e uma chaleira sempre no fogão, nasceu algo que vai muito além da perda de peso. Foi ali, em uma ocupação da Zona Sul de São Paulo, que um grupo de mulheres negras criou espaço, voz — e, veja bem — leveza. Não estou falando só de corpos que emagreceram, mas de culpas que foram embora, de traumas que deram lugar a autoamor. Essa é a história do coletivo “Corpas em Movimento”, que uniu chá de hibisco, escuta atenta e afeto para transformar trajetórias.

As raízes da iniciativa

Cláudia Regina dos Santos — prazer, esta que vos escreve — conheceu o grupo em 2019, quando fui chamada para mediar uma roda de conversa sobre autoestima nas periferias. Como mulher preta, obesa na juventude, e pesquisadora do corpo negro feminino, eu sabia o que aquelas mulheres sentiam. Elas estavam exaustas de tentarem emagrecer com dietas pensadas para corpos, rotinas e bolsos que não condiziam com suas realidades.

Foi então que Dona Zuleica, uma senhora de 64 anos com olhar vívido e mãos calejadas de afeto, propôs: “E se a gente começasse nosso próprio grupo de apoio? Com chá que cabe no nosso orçamento, comida feita na nossa cozinha, e conversa de mulher preta pra mulher preta?” Foi aí que tudo começou.

Uma roda que gira com afeto

As reuniões, no começo tímidas, viraram espaço de cura. Toda quarta-feira, ao cair da tarde, cerca de 15 mulheres se reuniam. Não para contar calorias, mas para contar histórias. Não para medir corpos, mas para medir afetos. O chá de hibisco, preparado por Dona Zuleica, virava símbolo de cuidado mútuo: uma bebida diurética, sim, mas também ritualístico, quente, vermelho como sangue ancestral.

A roda seguia uma lógica própria, marcada por três pilares fundamentais:

  • Compartilha quem quer: Nada era obrigação. A fala era ofertada, não cobrada.
  • Escuta sem julgamento: Ninguém interrompe, ninguém corrige o corpo ou a história da outra.
  • Coletividade acima da culpabilização: Comer um doce não é fracasso, é parte da vida. O foco é no vínculo, não no controle.

O papel do chá na transformação

Parece bobagem para quem só vê o título, mas o chá de hibisco virou símbolo. Sim, ele tem propriedades que ajudam na perda de peso: é diurético, antioxidante e pode auxiliar na redução da pressão arterial. Mas aqui o chá era sobretudo um remédio para a alma. Era cuidado materializado em líquido. Quando uma das mulheres não podia vir, outra levava o chá em sua garrafinha, junto com um bilhete de carinho.

Resultados que vão além da balança

Em dois anos, 13 das 20 mulheres que passaram pela roda perderam entre 5 e 18 quilos. Mas os ganhos não estão apenas no número da balança. Segundo pesquisa informal feita pelo próprio coletivo, os principais benefícios apontados por elas foram:

  1. Melhora na autoestima: 92% relataram passar a se ver com mais amor e orgulho.
  2. Redução nos episódios de compulsão alimentar: trocas sinceras sobre alimentação emocional ajudaram a identificar gatilhos.
  3. Formação de rede de apoio: 100% disseram se sentir menos sozinhas após iniciarem a roda.
  4. Maior acesso à informação sobre saúde, sem viés racista ou gordofóbico.

Sem clínicas caras, sem influenciadoras patrocinadas por shakes, essas mulheres encontraram nos saberes ancestrais e nas tradições orais uma forma potente de autocuidado.

Humor, lágrimas e muita garra

Era comum nos encontros alguém soltar uma piada: “Menina, com tanto chá, meu banheiro quase virou escritório!” Ou então: “Aqui a gente não perde peso, a gente larga o que não pertence!” Ríamos juntas. Ríamos das dietas doidas que já fizemos, dos conselhos sem noção que recebemos. Toda mulher preta ouviu: “você tem o rosto bonito, só precisava emagrecer”. Na roda, a gente ouvia: “você é linda, e ponto”.

Tivemos choros também. Lembro da Juliana, que aos 42 anos descobriu que comia compulsivamente sempre que o marido gritava com ela. Pela primeira vez, tinha nomeado a dor. Nomear é resistir. Nomear é o começo da cura.

O saber ancestral como farol

A filosofia da roda é profundamente ligada ao conceito de “Ubuntu”, termo africano que carrega o sentido de: “eu sou porque nós somos”. Essa ética comunitária resgatada pelo grupo é também presente na culinária, nas ervas, nos bordados que algumas levam como ferramenta de meditação. O emagrecimento, aqui, é visto como efeito colateral de uma cura mais ampla: cura da fome ancestral, da invisibilidade, da solidão.

Desafios enfrentados

Nem tudo são flores de hibisco. O grupo enfrentou dificuldades: falta de verba para manter o espaço, preconceitos dentro das próprias famílias, e a pressão estética que jamais tira férias. Algumas mulheres contaram que ao emagrecerem, passaram a ser mais sexualizadas no trabalho, e precisaram lidar com novos tipos de violência. Outras sentiram culpa por engordarem novamente durante a pandemia. A roda, porém, sempre acolheu cada fase como parte do caminho.

“Corpas em Movimento” hoje

Hoje, o grupo se expandiu. Tem núcleos na Zona Leste e até em Salvador. Os encontros foram adaptados para o formato online durante a pandemia, e seguem híbridos até hoje. O chá ainda é servido, agora por tela interposta. Mas o calor humano não esfria. A sororidade preta continua sendo o principal ingrediente desse processo de autocuidado e bem-estar.

O que podemos aprender com essa história?

Que emagrecer não precisa ser solitário, punitivo ou colonizado. Que o cuidado coletivo, enraizado nos saberes das nossas antepassadas, tem um poder de transformação singular. Que é possível buscar saúde respeitando as curvas da ancestralidade, os ritmos da periferia e o tempo do corpo.

E acima de tudo: que quando mulheres negras se reúnem, revolucionam — até o chá parece mais potente.

Conclusão

O caso do “Corpas em Movimento” mostra que a chave para o emagrecimento saudável pode estar fora das prateleiras de suplemento, e dentro das rodas de escuta. Pode estar no abraço, na escuta, no chá partilhado. Em tempos em que o corpo negro feminino continua sendo alvo de múltiplas opressões, iniciativas como essa apontam um outro caminho: o da resistência amorosa.

Como Cláudia, como mulher, como pesquisadora e como uma das milhares que já sofreram por simplesmente existir num corpo que incomoda, deixo aqui um convite: que mais rodas como essa brotem. Que mais mulheres negras se reconheçam, se curem e se fortaleçam. Com ou sem hibisco, mas sempre com afeto.

Publication date:
Author: Cláudia Regina dos Santos
Jornalista investigativa com mais de 20 anos de atuação, especializada em saúde e alimentação. Com estilo empático e engajado, destaca questões sociais e estruturais, especialmente ligadas à população negra e periférica. Usa linguagem próxima e acessível para humanizar dados e estatísticas.

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