‘Era difícil caber em mim’: obesidade e identidade de gênero no depoimento de Roberta

“Era difícil caber em mim”: obesidade e identidade de gênero no depoimento de Roberta

Os olhos de Roberta pareciam certos de tudo ao me encarar, mas bastaram poucos minutos de conversa para revelar que por dentro ela havia passado anos tentando entender para onde ir. A frase que dá título a essa reportagem saiu de seus lábios com naturalidade, embora escondesse décadas de conflitos, silêncio e um desejo quase impossível — o de, simplesmente, existir num corpo que fosse realmente seu.

Um corpo estranho demais

Eu me sentia como se morasse num corpo que não era meu, ao mesmo tempo que esse corpo era enorme demais pra me esconder do mundo”, disse Roberta, ao lembrar dos tempos em que lidava, simultaneamente, com a obesidade e a disforia de gênero. Sua história começa no subúrbio da Zona Norte do Rio de Janeiro, numa casa modesta, uma mãe evangélica e um pai ausente. “Comer foi o meu primeiro alívio”, confessou.

Desde muito cedo, Roberta entendia que existia uma diferença entre ela e os meninos da sua escola. Mas isso não era assunto permitido. O que era permitido — e incentivado — era comer. “Minha mãe dizia que pelo menos gordo era melhor que bicha”.

Gênero e peso: o peso do silêncio

Os anos passaram e os quilos se acumularam. “A comida virou minha capa de invisibilidade”, relatou. Aos 18 anos, Roberta (ainda chamada pelo nome de batismo masculino) já pesava mais de 130 quilos. “As pessoas paravam de olhar para o meu jeito afeminado para comentar do meu tamanho. Era, de certa forma, um alívio horrível.”

A obesidade muitas vezes é tratada apenas como uma questão de alimentação ou sedentarismo. Mas, na história de Roberta, ela funcionava como defesa, como identidade provisória e como máscara. “Não era só falta de exercício ou exagero. Eu me escondia nos quilos. Eu precisava sumir pra não ser atacada”, afirmou.

A solidão de não se reconhecer

Imagine não conseguir se olhar no espelho sem sentir que está vendo uma outra pessoa. Agora, adicione a isso o julgamento constante, o preconceito e uma sensação de inadequação que começa antes mesmo de levantar da cama. É assim que Roberta descreve sua adolescência.

Era difícil caber em mim”. A frase, dita com um sorriso amargo, resume um sentimento que vai além da estética. Literalmente, ela sentia que o corpo era um obstáculo entre sua mente e sua liberdade. “Eu me olhava no espelho e não via uma mulher gorda. Via um homem gordo, e isso doía mais do que qualquer dieta restritiva.”

O despertar para quem sempre foi

Foi já na vida adulta, aos 27 anos, que Roberta enfim encontrou o nome para seu desconforto crônico: disforia de gênero. A descoberta veio após anos de leitura, busca por ajuda psicológica e, principalmente, um encontro decisivo com uma médica endocrinologista que, pela primeira vez, perguntou: “Você se reconhece nesse corpo?”

A resposta foi um choro silencioso, que dizia tudo o que ela nunca tinha ousado admitir. Sim, a obesidade era um problema para sua saúde. Mas o maior incômodo vinha da não-permissão de ser mulher. “Todo mundo queria que eu emagrecesse, mas ninguém queria ouvir que eu precisava começar do começo: mudar meu gênero.”

Transicionar: do medo à coragem

A transição de Roberta não começou com hormônios ou cirurgias. Começou com coragem. Coragem de se ver, de se permitir e de finalmente contar para sua mãe: “Eu sou mulher”. A reação foi o silêncio, seguido de lágrimas e, meses depois, de uma aceitação cheia de tropeços, mas real.

Minha mãe hoje me chama de filha. Ela ainda erra às vezes, mas sei que está tentando. Isso pra mim vale ouro”, compartilhou, com os olhos marejados.

Emagrecimento como reencontro

Depois de iniciar o processo de transição, Roberta começou gradualmente a emagrecer. Não por imposição estética, mas como resultado do alinhamento entre seu corpo e sua identidade. “Quando parei de brigar comigo mesma, comer deixou de ser necessidade emocional”, contou.

Ela procurou orientação profissional com uma nutricionista especializada no atendimento a pessoas trans, iniciou terapia hormonal com acompanhamento multidisciplinar e começou a frequentar caminhadas no parque. “Eu não tava correndo pra emagrecer, eu tava caminhando pra viver”, brincou.

Desafios que ainda seguem

A jornada de Roberta está longe de ser livre de obstáculos. A transfobia, o preconceito com corpos fora do padrão e os julgamentos continuam, ainda que em menor escala. Mas o que muda agora é a forma como ela reage. “Hoje tenho resposta pronta. E minha resposta é viver bem, do meu jeito.”

Ela ainda convive com oscilações de peso, efeito rebote de dietas antigas e um metabolismo que, segundo ela, “é mais lento que fila de banco”. Mas agora ela conhece seu corpo. E, mais importante, ela se ama.

Quando caber em si é uma conquista

Hoje eu não só caibo em mim. Eu me visto de mim todos os dias, com orgulho”, disse Roberta, ao final da entrevista. Suas palavras têm a força das que sobreviveram ao apagamento, ao abandono e à violência sutil (e às vezes não tão sutil) do cotidiano.

Sua história nos lembra que saúde não é só número na balança. É, sobretudo, autoestima, reconhecimento e acesso a direitos básicos como ser acreditado na própria identidade.

Com 34 anos, cabelos tingidos de vermelho escuro e um apetite pela vida que ninguém mais pode apagar, Roberta é um exemplo de como emagrecimento e identidade de gênero podem se entrelaçar numa batalha silenciosa. Mas também é prova viva de que há vida após o medo. E que caber em si mesma pode ser, enfim, o primeiro passo para ocupar o mundo.

Um recado de Roberta para quem vive a mesma jornada

  • Você não está sozinho. Nem sozinha. Nem solitude nenhuma precisa ser sua casa.
  • A gordura não é culpa, é consequência. Mas o afeto pode ser causa de mudança.
  • Transicionar vai muito além do corpo: é sobre existir com dignidade.
  • Busque apoio, profissional e emocional. E permita-se florescer. É o mínimo que você merece.

Se você se reconhece na história de Roberta, saiba que há caminhos possíveis. E que viver em um corpo que abrace quem se é, de verdade, é um direito de todos nós.

Publication date:
Author: Cláudia Regina dos Santos
Jornalista investigativa com mais de 20 anos de atuação, especializada em saúde e alimentação. Com estilo empático e engajado, destaca questões sociais e estruturais, especialmente ligadas à população negra e periférica. Usa linguagem próxima e acessível para humanizar dados e estatísticas.

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