‘Todo mundo falava da minha barriga, ninguém via minha dor’: o peso invisível do preconceito
“Todo mundo falava da minha barriga, ninguém via minha dor”: o peso invisível do preconceito
Me chamo Cláudia Regina dos Santos. Sou educadora física, escritora e uma mulher que já sentiu na pele — e na alma — o que é carregar pesos que nenhuma balança registra. E não estou falando de calorias. Falo de olhares tortos, de piadas de ‘tiozão simpático de churrasco’, e de comentários disfarçados de preocupação. Hoje compartilho com vocês uma história real, que poderia ser a minha ou a de tantas outras mulheres. Uma história sobre o corpo, o julgamento e, principalmente, a dor silenciosa que muitos fingem não ver.
Quando o espelho reflete mais que a aparência
Luciana*, 34 anos, professora da rede pública e mãe solo de dois filhos, chegou até mim após uma roda de conversa sobre autoestima e saúde integral. Ela tinha uma daquelas vozes suaves, dessas que não tentam incomodar ninguém. Mas bastou um “Oi” para que eu percebesse que havia muito grito escondido naquela garganta.
“Todo mundo falava da minha barriga, ninguém via minha dor”, foi a frase que ela me disse entre um suspiro e outro. Aquelas palavras me arrancaram um silêncio profundo. Ela estava contando algo muito além do peso físico. Era sobre o peso do preconceito — gordofobia, para dar nome correto — e do abandono emocional.
O dia em que paramos de ser pessoas e viramos corpos
Durante anos, Luciana ouviu das colegas de trabalho que “precisava cuidar melhor da saúde”, e do ex-marido que “preferia quando ela era mais magrinha”. As amigas do bairro mandavam receitas “milagrosas” por WhatsApp e, no grupo da família, o primo engraçadinho mandava memes com Ursinho Puff e legendas: “Luciana depois da ceia de Natal”.
Ela sorria. Por fora. Porque por dentro, o coração dela se afundava mais do que qualquer número na balança. Ela se olhava no espelho e via o que todos falavam, mas não via ela mesma. Aos poucos, passou a esconder o corpo com roupas largas, a desistir de ir à piscina com os filhos e até de viajar — com medo dos olhares no avião ou do cinto que talvez não fechasse.
O corpo gordo como alvo social
O Brasil, infelizmente, ainda acha legítimo opinar sobre o corpo alheio — especialmente quando esse corpo é o de uma mulher. O preconceito contra pessoas gordas está tão enraizado que se disfarça de preocupação com a saúde. Mas que saúde é essa que só vê o IMC e ignora saúde mental, histórica, social e emocional?
Gordofobia não é opinião, é violência disfarçada. E o curioso é que ela não escolhe palavras doces. Ela se revela nas consultas médicas em que tudo é culpa do peso, nos sorrisos forçados ao experimentar roupas que não servem e nos comentários em redes sociais cheios de “sinceridade”.
Mas por que precisamos falar sobre isso?
Porque isso mata autoestima. Isso abafa talentos, mina relacionamentos e adoece gente saudável. Luciana me contou que deixou de se candidatar ao cargo de coordenadora pedagógica porque achava que ninguém levaria uma mulher gorda a sério.
Ela começou a fazer jejum intermitente sem orientação. Ficou dias apenas à base de água com limão. Chegou a desmaiar no ônibus — mas ninguém conectou isso a um padrão doentio de exigência estética. A preocupação que antes era com a bariátrica, virou diagnóstico de depressão e crise de ansiedade. E mesmo assim, ainda se escutava: “Mas você está com esse corpo porque quer!”
O que não te contaram sobre emagrecimento
Luciana emagreceu. Foram 18 quilos. Mas o que ninguém comentou foi o luto que ela carregou junto. Ela perdeu peso, sim. Mas perdeu também confiança, espontaneidade e até amigos. Porque os elogios ao corpo novo não disfarçavam o fato de que ela ainda não se sentia vista.
Não era sobre emagrecer. Era sobre ser aceita — e acolhida — como ser humano. Só depois de muito tempo ela começou um processo mais verdadeiro: o de se escutar, de se respeitar e buscar ajuda profissional não para caber em roupas, mas para voltar a caber na própria vida.
Quais são os sinais do preconceito invisível?
Mesmo que não venha com ofensas explícitas, o preconceito tem maneiras silenciosas de se manifestar. Veja exemplos comuns:
- Olhares insistentes em ambientes públicos, especialmente se a pessoa está comendo ou praticando exercícios.
- Associação automática entre gordura e doença, sem qualquer análise completa da saúde da pessoa.
- Frases de “preocupação” que soam mais como julgamento: “Você precisa se cuidar”, “Assim você vai morrer cedo”.
- Menosprezo de competências: pessoas gordas sendo vistas como preguiçosas ou desleixadas.
Um convite à empatia verdadeira
Reduzir uma pessoa ao tamanho da sua barriga é a forma mais cruel de apagá-la. Ninguém sabe das dores que ela carrega. Ninguém vê os traumas alimentares, a infância cheia de apelidos, os relacionamentos abusivos baseados em depreciar o corpo.
Se você já fez um comentário sobre “só mais um pedacinho?” ou perguntou “Mas você já tentou uma dieta low carb?”, pare. Reflita. Nenhum comentário sobre o corpo de alguém é neutro. Pode parecer inofensivo para você, mas pode deixar cicatrizes invisíveis na autoestima de alguém.
A virada de chave de Luciana
Hoje, Luciana ainda está em processo. Mas ela já não corre para se esconder nas fotos em grupo. Vai à praia com os filhos sem camisetão. Busca na alimentação e na atividade física algo que vai além do emagrecimento: reencontro. Ela ainda escuta comentários indesejados, mas agora ela responde com algo poderoso: presença.
Ela começou a se ver — antes de esperar que os outros enxergassem. E quando ela se vê, não cabe mais nos rótulos frouxos ou nas críticas baratas. Porque o amor-próprio não serve só nas magrinhas das revistas: ele é peça fundamental no guarda-roupa da alma.
Para finalizar, um recado meu, Cláudia
Se você é Luciana. Se você carrega uma barriga doída de julgamentos, saiba: o seu valor não pesa na balança. Seu corpo é casa, é história, é resistência. E seu caminho de saúde começa dentro, onde nenhuma fita métrica alcança.
Talvez o mundo continue reparando na sua barriga, mas daqui pra frente, que você repare na sua coragem. Ela também é visível — e é linda.
*Nome fictício para preservar a identidade da personagem.
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