Do fast food ao feijão de corda: como uma adolescente baiana superou distúrbios alimentares com resgate cultural

Do fast food ao feijão de corda: como uma adolescente baiana superou distúrbios alimentares com resgate cultural

Se a comida fala sobre quem a gente é, o prato da baiana Talita, de 17 anos, andava bem silencioso durante anos. Entre hambúrguer genérico e nuggets congelados, ela vivia uma batalha silenciosa na mesa de jantar. “Era como se eu comesse para calar o mundo”, conta, com o sotaque carregado de Salvador e o sorriso agora cheio de cores — como um acarajé bem feito.

Talita é uma entre tantas adolescentes brasileiras que conviveram com distúrbios alimentares, um tema ainda cercado de tabus, medo e desinformação, especialmente fora dos grandes centros urbanos. Mas a história dela tem um tempero inusitado: a cura começou quando ela resgatou o sabor da sua terra, da sua infância e da sua avó — e, acima de tudo, quando compreendeu que comer não era errado. Errado era estar desconectada de si mesma.

Distúrbios alimentares: o silêncio que pesa mais do que o corpo

Durante o ensino fundamental, Talita passou a desenvolver uma relação conflituosa com seu corpo e o ato de se alimentar. Rodeada por padrões estéticos inalcançáveis nas redes sociais e por colegas que reproduziam uma ideia distorcida de saúde, ela mergulhou em um ciclo doloroso de culpa, restrição e compulsão.

“Eu comia escondida, depois não comia mais nada o dia todo. Me pesava toda semana. Chorava sozinha quando a blusa não cabia como antes”, relembra.

O cenário de sua alimentação era dominado pelas mesmas marcas de fast food que aparecem coloridas nas telas, mas que deixam a vida em tons de cinza. Lanches rápidos, refrigerante ao invés de água, comidas ultra processadas distribuídas entre as madrugadas e dias de apatia.

Segundo a Associação Brasileira de Nutrologia (ABRAN), distúrbios como compulsão alimentar, anorexia e bulimia afetam milhares de jovens todos os anos, especialmente entre meninas que têm o corpo como alvo constante de críticas e comparações.

O estalo: um prato da infância serviu de ponto de virada

Foi durante uma das férias escolares que Talita experimentou o que ela descreve como seu “estalo de fé”. Visitando a avó na roça de São Félix, no Recôncavo Baiano, ela se viu comendo com prazer uma comida que não via há anos: feijão de corda com abóbora, feito no fogão à lenha.

“Quando botei o primeiro garfão na boca, era como se eu tivesse voltado pra mim. Chorei com gosto. Comida de verdade é isso aí — amor, história, cheiro de casa. Esse feijão era minha identidade”, diz, emocionada.

A partir dali, começou uma transição não só alimentar, mas emocional. Sua avó, mulher preta, firme e risonha, lhe ensinou mais do que receitas. Mostrou que comer é um ato cultural, ancestral, e que tem muito mais a ver com conexão do que com controle.

Cultura alimentar como ferramenta terapêutica

O que Talita viveu tem base científica e emocional. Psicólogos e nutricionistas do campo humanizado defendem que o resgate da cultura alimentar pode ser uma poderosa aliada na recuperação de distúrbios alimentares. Isso porque ele oferece mais do que nutrição: entrega pertencimento.

Ela começou a aprender a preparar seus próprios alimentos, experimentando sabores típicos da culinária afro-baiana. Acarajé com vatapá, moqueca de banana da terra, arroz de hauçá… Cada prato era uma aula de afeto. Isso se refletiu também no corpo, que aos poucos deixava a rigidez e voltava à harmonia natural que existe quando comemos com consciência — não com culpa.

Desaprender a dieta, reaprender o sagrado

Com acompanhamento psicológico e nutricional, Talita passou a compreender que distúrbios alimentares não se curam com dieta, mas com escuta. Escuta do corpo, da alma e da história que cada pessoa carrega. Entendeu que reeducação alimentar não é cortar, mas escolher. E que não existe saúde onde há sofrimento silencioso.

“Meu nutricionista uma vez me perguntou: o que te alimenta além da comida? Na hora respondi: ‘O cheiro do dendê que minha avó usa. Isso me alimenta.’ E é verdade. Sempre que sinto, parece que sou abraçada de novo”, afirma.

5 mudanças que fizeram a diferença na jornada de Talita:

  • Fez terapia focada em imagem corporal e autoestima.
  • Buscou apoio nutricional com abordagem não prescritiva.
  • Reconectou-se com sua origem cultural e ancestral.
  • Reduziu o consumo de alimentos ultraprocessados sem proibições radicais.
  • Descobriu prazer na cozinha e passou a cozinhar como forma de autocuidado.

Talita hoje: mais forte, mais gentil consigo mesma

Dois anos se passaram. Hoje, Talita ajuda outras meninas da sua escola a quebrarem o silêncio sobre seus transtornos. Promove rodas de conversa sobre autocuidado, identidade e alimentação consciente. Nas redes sociais, compartilha receitas baianas com um toque afetivo e seus relatos viram bálsamo para quem ainda está dentro da tormenta.

“A gente acha que comer é o problema. Mas comer é justamente a saída. Comer o que nos faz bem, o que nos lembra quem somos”, finaliza ela.

Quando a cura começa na panela e termina no coração

A narrativa de Talita nos lembra o poder que temos nas mãos — e nas colheres. A comida transforma, cura, reconecta. Mais do que calorias ou contagens, ela é memória, identidade e corpo político. Quando uma jovem baiana encontra sua força num prato de feijão de corda, o mundo dá um passo à frente, com mais sabor, mais verdade e mais cura no prato.

Essa história é sobre escutar. Mas principalmente, é sobre saborear cada passo do caminho — degrau por degrau, garfada por garfada.

Publication date:
Author: Cláudia Regina dos Santos
Jornalista investigativa com mais de 20 anos de atuação, especializada em saúde e alimentação. Com estilo empático e engajado, destaca questões sociais e estruturais, especialmente ligadas à população negra e periférica. Usa linguagem próxima e acessível para humanizar dados e estatísticas.

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