Funk, caminhada e tapioca com chia: o remix da saúde feito por jovens de comunidade

Funk, caminhada e tapioca com chia: o remix da saúde feito por jovens de comunidade

Na viela 14 do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, o sol ainda nem nasceu direito, mas já tem som batendo no asfalto. Não é alarme de carro nem latido de cachorro — é beat de funk ecoando das caixinhas Bluetooth. Quem passa na hora pode até pensar que é festa, mas o que está rolando ali é outra vibração: é a turma da saúde dando show nas primeiras horas da manhã.

Quando a gente pensa em promoção da saúde, logo vem à mente clínicas, receitas e academias de shopping. Mas quem nasceu e cresceu na periferia sabe que saúde vai além da receita do nutricionista. Ela se reinventa no improviso, no coletivo e na criatividade. E é aí que os jovens das comunidades têm dado aula de empreendedorismo de bem-estar, criando um verdadeiro remix de hábitos saudáveis com pitadas de identidade local, força coletiva e muita batida de funk.

O ritmo que move o corpo e a mente

Quem puxa a fila do “Bloco da Endorfina” é a Jéssica Almeida, 24 anos, moradora do Morro da Fé. Ela começou a caminhada diária como quem só queria sair da rotina da pandemia. Mas bastou a vizinhança ver aquilo para entender que dava para transformar movimento em revolução. “Eu coloco o batidão porque o povo se anima. Se botar música instrumental, ninguém vem. A gente quer é dançar até suar!”, conta ela entre risadas, enquanto ajusta o som do celular.

Com o funk como maestro, o grupo ganhou gente de todas as idades. De manhã cedo, enquanto uma roda de caminhada começa nos becos, outra turma faz agachamentos em frente à pracinha. Tudo guiado por playlists colaborativas no WhatsApp. É bom para o coração, bom pra pressão e, de quebra, ainda melhora o humor. “Funk é nossa terapia. Quem acha que só serve pra balada, não conhece a batida da superação”, diz Jéssica.

Saúde com sabor de casa

Mas não é só de caminhada que vive a revolução saudável nas favelas. Depois da movimentação do corpo, vem o cuidado com o que entra no prato — e nisso, quem está dando aula é o Lucas Mariano, de 22 anos. Entre uma entrega e outra, ele prepara uma versão updated do café da manhã tradicional: tapioca com chia, recheada com frango desfiado, beterraba ralada e toque especial de orégano.

“Eu gosto da raiz. Tapioca é coisa de casa, da avó. Mas a chia entrou porque comecei a pesquisar na internet e vi que era boa pra saciedade. Juntei os dois: o que eu já sabia com o que aprendi lendo”, explica Lucas. Seu perfil no Instagram (@nutrifavela) já passou dos 40 mil seguidores, onde ele compartilha receitas simples, com ingredientes acessíveis e opções veganas.

Ele defende que alimentação saudável também é ato político. “A gente já é privado de tanta coisa. Comer bem não pode ser mais uma. Tem que ser acessível e com o nosso gosto, sabe? Nada de salada sem sal que parece castigo. Comida tem que abraçar a gente.”

Comunidade como academia

Outro nome que ganha força nesse remix saudável das quebradas é o projeto Quebrada Ativa, formado por um grupo de jovens educadores físicos e moradores do Complexo da Penha. A iniciativa começou com aulas de funcional na quadra pública e hoje tem mais de 300 participantes por semana.

No lugar de pesos e máquinas de academia, eles usam galões de água, elásticos e um entusiasmo quase contagiante. As aulas são abertas, gratuitas e pop — com direito a playlist de Ludmilla intercalada com Gloria Groove. “Tem gente que chega aqui sedentária e, em dois meses, já tá pulando corda e dançando sanfoninha. A autoestima muda, e a disposição também”, conta Letícia Pinheiro, responsável pelo projeto.

O foco é garantir desenvolvimento físico, mas sem esquecer da cultura que embala cada repetição: “A gente respeita as diferenças, o ritmo de cada um e, principalmente, o jeito favela de fazer tudo com criatividade. Aqui, a gente não imita nada de fora. A gente cria!”

Alimentação, afeto e acessibilidade

Não dá pra falar de saúde nas periferias sem destacar a importância do cuidado emocional coletivo. Muitas dessas práticas vêm com afeto e pertencimento embutidos, algo que nenhuma academia de luxo consegue oferecer.

As caminhadas matinais terminam com rodas de conversa, muitas vezes com psicólogos voluntários ou com as “tias da oração”, que fazem suas bênçãos guiadas. “É corpo, mente e alma. Tudo junto. Por isso dá certo”, diz Maria das Graças, de 38 anos, frequentadora assídua do grupo de caminhada do Alemão.

E por falar em acessibilidade: esse movimento mostra que ser saudável não é um privilégio. Pode (e deve) ser um direito de todos, inclusive dos que moram onde o Estado raramente chega. A diferença aqui é que a comunidade se organiza para ser protagonista da própria cura.

O futuro pulsa nas batidas da favela

Enquanto o relógio avança para as nove da manhã, o grupo começa a se dispersar. O funk baixa o volume, a garrafa de água já está na metade, e a sensação é de missão cumprida. Mas a meta vai além de queimar calorias. Eles querem transformar realidade, uma batida e uma tapioca por vez.

Essa juventude das periferias cria um novo paradigma de bem-estar — não colonizado, não imitado, mas sim inventado no calor do asfalto. Um modelo que respeita a cultura local, se apoia no coletivo e não precisa de roupas de marca, suplementos importados ou academias instagramáveis.

Como diz Jéssica, a musa inspiradora da caminhada com batidão: “O povo acha que vida saudável é só no Leblon. Mas olha aqui: a gente tá de batida no fone, tênis no pé e chia no café. A quebrada tá viva, tá leve, e tá cheia de saúde. Do nosso jeito!”

Conclusão: saúde que dança no batidão da superação

No fim das contas, o que esses jovens fazem é mais do que promoção de saúde: é revolução cultural. Eles estão mostrando que bem-estar não é só estatística ou biometria — é movimento, é amor, é som. E é possível, sim, fazer remix de tudo isso numa batida quente que nasce da resistência.

E que fique o recado: saúde é pra quem dança. E se tem alguém que sabe dançar, é a juventude da comunidade.

Funk. Caminhada. Tapioca com chia. A fórmula que a ciência ainda não mensurou, mas que já curou muito mais do que a gente imagina.

Publication date:
Author: Cláudia Regina dos Santos
Jornalista investigativa com mais de 20 anos de atuação, especializada em saúde e alimentação. Com estilo empático e engajado, destaca questões sociais e estruturais, especialmente ligadas à população negra e periférica. Usa linguagem próxima e acessível para humanizar dados e estatísticas.

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