Jejum intermitente no terreiro: sincretismo e sabedoria popular na saúde alimentar

Jejum intermitente no terreiro: sincretismo e sabedoria popular na saúde alimentar

Em tempos de dietas da moda, aplicativos para contagem de calorias e influencers fitness dizendo o que comer ou deixar de comer, é curioso pensar que práticas milenares, carregadas de fé, cultura ancestral e sabedoria popular, continuam vivíssimas dentro dos terreiros de candomblé e umbanda. Hoje, convido você a caminhar comigo por uma encruzilhada onde espiritualidade e saúde se encontram. Vamos falar sobre o jejum intermitente no terreiro — não como tendência estética, mas como vivência sagrada e transformação de dentro pra fora.

Uma prática ancestral além da balança

“Não come hoje, porque amanhã é dia de obrigação pro orixá”. Essa frase ecoa desde que me entendo por filha de santo. Aos olhos de fora, parece só uma penitência ou sacrifício espiritual. Mas quem vive o terreiro de corpo inteiro sabe que cada gesto vem carregado de sabedoria profunda. Principalmente quando o assunto é a comida — ou a ausência dela.

No terreiro da Mãe Neuza de Oxum, em Itanhaém, litoral de São Paulo, o jejum é tão natural quanto bater cabeça. “A gente aprende desde cedo que o corpo precisa se aquietar pra ouvir o sagrado”, conta Mãe Neuza, que aos 67 anos ainda cozinha para mais de 30 filhos de santo em festividades. “Antes de uma feitura, antes da limpeza dos caminhos, antes de qualquer coisa que envolva energia — a gente jejua. Não por estética, mas por respeito. E olha que emagrecer é quase efeito colateral”, completa com um sorriso cúmplice.

Esse jejum não segue a tabela dos nutricionistas modernos. É um saber empírico, regido pela lua, pelos ciclos do corpo e pelos ritos da comunidade. Às vezes é de 12 horas, às vezes chega a 24. Há quem jejue só de alimentos sólidos, há quem corte tudo, até a água. “Depende do orixá, do tipo de trabalho, da força espiritual envolvida”, explica Mãe Neuza, mexendo um feijão-de-louro dentro do caldeirão.

Corpo, espírito e equilíbrio

Nós, mulheres do axé, sempre soubemos que a saúde não mora só na carne magra e no suco verde. Ela mora no silêncio da madrugada, no banho de erva, na reza antes de comer e, sim, até no vazio do prato quando o momento exige. O jejum, nesse contexto, não é castigo. É preparação. É escuta.

Segundo especialistas em espiritualidade afro-brasileira, a prática do jejum nos terreiros atua como uma forma de limpeza energética. “Quando você para de comer, você silencia um dos principais canais de contato com o mundo material”, explica o professor e pesquisador Renato de Ogum. “Abre-se espaço para os sentidos sutis. No Candomblé, por exemplo, dizemos que o corpo é o templo do orixá. E esse templo, quando limpo e organizado, acolhe melhor a presença do divino”.

Sabedoria popular ou ciência?

Agora segura essa, que a ciência já começou a perceber o que os nossos mais velhos sabiam na prática há séculos. Pesquisas recentes mostram que o jejum intermitente pode:

  • Regulamentar os níveis de insulina, ajudando no controle da glicemia
  • Diminuir processos inflamatórios, favorecendo a saúde geral do corpo
  • Estimular a autofagia, um tipo de faxina celular que rejuvenesce os tecidos
  • Contribuir para a perda de peso de forma natural, sem dietas restritivas

Mas no terreiro ninguém faz jejum esperando milagre na balança. A mudança corporal é reflexo da mudança espiritual. A saúde, por aqui, é uma dança entre o corpo, o axé e o alimento — ou a ausência dele.

Jejum e sincretismo: entre santos e orixás

É impossível falar de jejum no Brasil sem lembrar do sincretismo religioso. Enquanto para os católicos a Quaresma propõe o jejum como forma de purificação, nossas mães antigas ensinavam que, naquele mesmo período, era tempo de recolhimento e silêncio nos terreiros também. “Não é coincidência”, diz Mãe Neuza. “O povo negro entendeu desde cedo que precisava esconder sua fé nos santos do branco, mas nunca deixou de se alimentar de axé.”

É por isso que num mesmo barracão você pode encontrar uma oferenda para Oxalá com água e arroz branco — bem parecido com o jejum católico da Semana Santa. O sincretismo, longe de diluir tradições, serviu como estratégia de resistência e como forma de manter viva a sabedoria alimentar das matrizes africanas.

Vozes do terreiro: o jejum na prática

Conversei com outras filhas e filhos de santo que vivem essa realidade fora do radar das redes sociais. Maria Aparecida, iniciada há 15 anos na casa de Pai Benedito, zona norte de Salvador, conta que seu corpo mudou depois que começou a respeitar os períodos de jejum recomendados no terreiro.

“Antes eu vivia inchada, cansada, ansiosa. Depois que aprendi a escutar o meu corpo durante os ciclos espirituais, entendi que comer simplesmente por costume não é necessário. Um dia sem comer, quando feito com zelo e propósito, foi melhor que qualquer dieta que já tentei.”

Já Carlos de Xangô, ogã e educador popular no Rio de Janeiro, lembra que parte desse entendimento precisa ser preservado fora da lógica capitalista da “nova dieta da moda”: “A mídia agora resolveu fazer do jejum um produto, né? Mas no terreiro ninguém vende o jejum, a gente compartilha. E com muito respeito ao corpo de cada um. Não é toda pessoa que deve ou pode jejuar. Tem que ouvir o organismo, e principalmente, o orixá.”

Entre o sagrado e o cotidiano

Jejuar num contexto espiritual é, antes de tudo, um ato de presença. É se conectar com o próprio corpo, com a ancestralidade e com as forças que regem o sagrado na natureza e em nós. No terreiro, não se faz nada por vaidade — muito menos deixar de comer. Cada decisão tem axé, fundamento e propósito.

Não há necessidade de ritualizar o jejum apenas pelo modismo. Mas talvez possamos aprender com o terreiro a olhar para o nosso próprio corpo com mais escuta e menos repressão. A saúde talvez more nesse lugar de afeto entre o prato cheio e o prato vazio — onde o alimento é também memória, conexão e cura.

Para refletir

Antes de adotar qualquer prática alimentar, procure orientação profissional. E, se você vive em contato com alguma expressão de espiritualidade ativa — seja no terreiro, no templo ou na natureza — escute o que o corpo diz nos espaços de silêncio. O que para uns é dieta, para outros é iniciação. O que para alguns é moda, para nós é caminho.

E como bem diz minha avó, benzedeira de mão cheia: “Só tem força o corpo que tem espírito presente. E pra isso, às vezes, é preciso esvaziar pra poder encher de novo.”

Axé e alimento: juntos, nunca separados

Nas próximas refeições, lembre disso: nosso alimento tem axé, e nossa sabedoria popular é uma medicina que atravessa gerações. Jejum intermitente? No terreiro a gente faz faz tempo — não só pra saúde, mas pra alma também.

Publication date:
Author: Cláudia Regina dos Santos
Jornalista investigativa com mais de 20 anos de atuação, especializada em saúde e alimentação. Com estilo empático e engajado, destaca questões sociais e estruturais, especialmente ligadas à população negra e periférica. Usa linguagem próxima e acessível para humanizar dados e estatísticas.

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