O coletivo que cozinha amor e saúde nas ocupações urbanas do Recife
O coletivo que cozinha amor e saúde nas ocupações urbanas do Recife
É dentro da panela fumegante sobre o fogão comunitário que a vida borbulha com sabor de resistência, afeto e compromisso com o bem-estar. No coração das ocupações urbanas do Recife, um coletivo de mulheres — fortes, lúcidas e apaixonadas — transforma ingredientes simples em refeições que alimentam corpos, histórias e esperanças. E como boa contadora de causos que sou, hoje te levo pra dentro dessa cozinha onde cada cheiro tem memória e cada colherada, intenção.
A receita que une resistência e cuidado
O nome ainda não tem placa oficial, mas nas bocas faladeiras das ocupações, o coletivo já ganhou apelidos carinhosos: “As Meninas da Comida Boa”, “O Povo da Marmita Saudável” ou simplesmente “A Cozinha do Amor”. Formado por mulheres que moram nas ocupações urbanas do Recife — especialmente nas comunidades do Cabanga, Coelhos e Brasília Teimosa —, o grupo surgiu da necessidade urgente de garantir alimentação digna e nutritiva durante os tempos mais duros da pandemia.
Mas o movimento cresceu, virou um espaço de cuidado comunitário e, sem romantizar pobreza, passou a transformar adversidades em potências. Aqui, o cardápio é baseado em ingredientes acessíveis e frescos: muita folha verde, raízes, grãos e temperinhos cheios de axé. A frase que mais se ouve por ali? “Comida é remédio, minha filha. A gente cura pela boca também.”
Como tudo começou
Toda boa história começa com uma ideia aparentemente pequena. A semente foi plantada por Dona Judite, uma senhora de 63 anos e força de vulcão. Depois de perder vizinhos queridos para a fome silenciosa da pandemia, ela decidiu usar a calçada de casa como cozinha e a própria aposentadoria como capital inicial. Cozinhava de 10 a 15 marmitas por dia, que eram distribuídas entre os vizinhos com maior vulnerabilidade.
Com o tempo, outras mulheres, como Maria Cláudia — uma ex-técnica de enfermagem desempregada — se juntaram a ela. Entre colheres de pau e tachos de feijão, nasceu então o coletivo. Logo estavam reunidas em mutirões, com arrecadações vindas de rifas, bazares comunitários e doações de feiras orgânicas, sempre com aquele jeitinho recifense de fazer muito com pouco.
Na cozinha, saúde e acolhimento caminham juntas
O diferencial do coletivo está na proposta de levar não apenas comida, mas alimentação saudável e antirracista para dentro das ocupações. Isso significa resgatar saberes ancestrais africanos, indígenas e nordestinos, valorizando alimentos tradicionais, como inhame, jerimum, feijão macassa, taioba e banana verde como base nutritiva.
“Não adianta só matar a fome com macarrão instantâneo todo dia. Nosso corpo precisa de carinho, e isso vem da terra, da panela e de quem cozinha com intenção”, afirma emocionada dona Judite, enquanto tempera um vatapá ‘de raiz’ para o almoço de domingo.
Consultoria que vem da tradição
As integrantes mais antigas servem como guias para as novas, e muitas receitas são passadas no olho, no cheiro, como se faz nas cozinhas de antigamente. Mas a sabedoria popular se mistura também com a força do conhecimento técnico. Maria Cláudia, por exemplo, propôs a inclusão de folhas naturais ricas em ferro no preparo de bolinhos e sucos, ensinando inclusive sobre os efeitos das deficiências nutricionais mais comuns nas comunidades.
Mulheres que curam com as mãos
Cláudia me conta — enquanto mexe um arroz integral com cenoura, cúrcuma e coentro fresquinho — que todas no projeto passaram por lutos, ausências e invisibilidades, e que o gesto simples de servir um prato de comida foi o jeito mais potente de permanecerem inteiras.
“Muita gente acha que fazer comida é só jogar coisa na panela. Mas não, minha filha. Aqui a gente ouve, acolhe, chora com a vizinha enquanto cozinha. É uma cozinha política e terapêutica.”
De fato, o coletivo também atua como espaço seguro para conversas sobre violência doméstica, maternidade solo, racismo e pobreza. Enquanto os legumes são cortados, as histórias são costuradas. E assim, o alimento vai ocupando não só os estômagos, mas os silêncios, os traumas e os medos.
Educação alimentar como ferramenta de libertação
Com o passar do tempo, o grupo organizou oficinas de educação alimentar para jovens da comunidade, mostrando como fazer escolhas mais saudáveis dentro do orçamento apertado. O que parecia impossível — trocar o refrigerante por um suco de caju com folha de goiabeira, por exemplo — se mostrou uma revolução silenciosa.
As oficinas foram batizadas de “Sabor que Liberta” e já formaram mais de 150 jovens e mães solo. A cada encontro, uma nova receita, uma nova história. O mais bonito? A parte prática da oficina é feita com os próprios moradores cozinhando juntos, provando e aprendendo entre risos e sustos culinários.
Sem glamour, com dignidade
Não há glamour nessa cozinha — e nem precisa. Há coragem, afeto, erros, acertos e panelas que queimam às vezes, mas também há uma ética do cuidado que muitos projetos formais por aí ainda não conseguiram imitar. É a força da coletividade que transforma comida em política pública na prática.
O coletivo já busca a formalização como ONG e tenta firmar parcerias com hortas urbanas e universidades públicas. Mas mesmo sem títulos oficiais, já foi reconhecido por outras cozinhas comunitárias de Salvador, São Paulo e Belo Horizonte.
O futuro ferve no fogão
Entre metas e sonhos, estão a construção de uma sede própria, com cozinha industrial, biblioteca, sala de atendimento psicológico e hortas suspensas. Ambicioso? Com certeza. Mas como diz dona Judite:
“Se a gente consegue alimentar uma comunidade com três panelas e um coração valente, imagina o que não faz com estrutura?”
Por que essa história importa
Quem me conhece sabe que acredito que boas histórias alimentam tanto quanto uma boa panela de feijão. Esta aqui é daquelas que nos lembra do que vale lutar: comida digna, soberania alimentar e saúde construída no dia a dia das favelas e periferias. Entre vapor quente e conchas generosas, essas mulheres mostram que acolher é verbo concreto. E que o prato cheio, temperado com cuidado, pode sim ser um ato radical de amor.
Que o exemplo delas sirva de inspiração, não como exceção, mas como caminho possível. E que haja mais cozinhas como essa — nas calçadas, escolas, praças e corações. Porque no fim das contas, meu povo, é como dizem por lá: “Quem reparte, multiplica — até o que era pouco.”
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