Obesidade infantil: a estratégia dos coletivos de mães no combate ao excesso de peso nas creches públicas

Obesidade infantil: a estratégia dos coletivos de mães no combate ao excesso de peso nas creches públicas

Era uma manhã abafada em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, quando conheci dona Lourdes, uma mulher baixa, cabelos bem puxados para trás e olhos de quem já viu muita coisa. Com a neta no colo, ela me disse, sem rodeios: “Minha filha foi obesa aos cinco. Não quero que isso aconteça com minha neta.”

O que parecia uma frase despretensiosa me levou para dentro de uma história que resiste: a da organização de dezenas de mulheres – mães, avós e tias – que se uniram para enfrentar uma epidemia que cresce em silêncio nas periferias do Brasil: a obesidade infantil nas creches públicas.

O problema começa no prato (e também no bolso)

Segundo dados do Ministério da Saúde, uma em cada três crianças entre 5 e 9 anos no Brasil está com excesso de peso. Os índices aumentam ainda mais nas regiões de maior vulnerabilidade social. A alimentação escolar, muitas vezes a principal fonte de nutrição dessas crianças, nem sempre é suficiente — e algumas vezes, nem saudável.

Cláudia Regina, 39 anos, pedagoga e mãe solo de dois meninos, conta que o drama começou quando o filho mais novo passou a frequentar uma creche pública e voltou para casa com fome. “Lanche era biscoito recheado e refresco artificial. Eu achava que era exagero dele até ir lá e ver com meus próprios olhos. Aquilo não alimentava, só inchava.”

Como a obesidade infantil escancara desigualdades

O acúmulo de peso nas fases iniciais da vida está ligado a uma série de questões que vão desde a genética até o sedentarismo, passando, principalmente, pela má alimentação. Mas o que poucas pessoas falam é que as crianças negras e periféricas são as que mais acumulam gordura abdominal, por terem mais contato com alimentos ultraprocessados.

Em bairros como Jardim Catarina, em São Gonçalo, e Anchieta, na Zona Norte carioca, é mais fácil encontrar uma loja de doces por quilo do que uma feira de frutas. Essa combinação de oferta de alimentos baratos e pouco nutritivos com uma vida sedentária cria o caldo perfeito para o avanço da obesidade infantil.

Coletivos de mães na linha de frente

Foi nesse cenário que surgiram os “coletivos de mães” – organizações espontâneas criadas por mulheres que se recusaram a aceitar que o destino alimentar de seus filhos fosse ditado pela precariedade do sistema.

Em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, a nutricionista e mãe de três, Maria Angélica, juntou-se com outras seis vizinhas para criar o “Mães do Pratinho”, um grupo que fornece orientação alimentar para escolas e famílias da comunidade.

“Começamos compartilhando receitas simples no WhatsApp. Agora fazemos oficinas no salão da igreja. Mostramos como fazer bolinhos assados de feijão, suco natural de casca de abacaxi e pão de cenoura com menos de R$ 10 reais.”

Menos telas, mais hortas

Outro ponto de atenção dos coletivos é o sedentarismo. Com poucas opções de lazer seguro, muitas crianças passam horas nos celulares. Em resposta, mães como Vanessa Rocha, da comunidade do Dique, em Santos, criaram o projeto “Mini Hortas nas Creches”.

“Além de movimentar o corpo, elas aprendem de onde vem o alimento, tocam na terra, colhem alface e levam para casa. Isso muda muito a relação delas com a comida.” Vanessa acredita que ver o alimento nascer transforma o vínculo da criança com a comida — e com o próprio corpo.

Parcerias que fazem a diferença

Alguns coletivos conseguiram ir além do ativismo e firmaram parcerias com universidades, ONGs e até prefeituras. Em Salvador, o grupo “Mães do Pelô” inseriu nutricionistas voluntárias dentro de creches, que passaram a fazer o acompanhamento nutricional mensal das crianças.

Lúcia Nascimento, 44 anos, presidente do grupo, conta com orgulho: “Conseguimos mudar o cardápio de 3 escolas. Entraram frutas da estação, reduziram o açúcar e melhoraram a qualidade da merenda.”

E os resultados aparecem. Em três meses de intervenção, 38% das crianças com sobrepeso reduziram medidas da cintura, segundo relatório da Universidade Federal da Bahia.

As conquistas são muitas, mas os desafios continuam

Apesar dos avanços, as mães relatam resistências. Algumas direções escolares não aceitam interferência externa. Outras vezes, as tentativas de parceria com as gestões públicas esbarram na burocracia ou em cortes de verbas.

“Tem escola que preferiu continuar comprando bolacha de chocolate porque já estava no contrato do fornecedor”, lamenta Cláudia, do Rio. Ainda assim, ela diz que nada vai calar a luta de uma mãe que já viu o filho chorar porque não conseguia correr como os colegas.

Conclusão: quando as mães se unem, a saúde vence

A luta contra a obesidade infantil não é apenas sobre comida. Ela é sobre educação, equidade, afeto e comunidade. Os coletivos de mães mostraram que, quando organizadas, são capazes de transformar cardápios, mudar culturas alimentares e proteger o futuro das crianças brasileiras.

Elas não esperaram por políticas públicas — elas foram a política na prática.

Enquanto escrevo essas linhas, penso na dona Lourdes de Nova Iguaçu. Na sua neta. Em tantas outras gerações que agora têm mais chances de correr, brincar e crescer saudáveis porque suas mães ousaram fazer diferente.

Você pode fazer parte dessa mudança

Se você é mãe, tia, educadora ou simplesmente alguém que se preocupa com o presente das nossas crianças, aqui vão algumas formas de fortalecer esse movimento:

  • Converse com a direção da escola ou creche sobre o que está sendo servido na alimentação escolar;
  • Proponha ações educativas envolvendo hortas, culinária e visita a feiras;
  • Evite mandar alimentos ultra-processados na lancheira dos pequenos;
  • Crie ou participe de grupos locais que compartilham experiências e receitas de alimentação saudável;
  • Se puder, incentive a prática de esportes ou atividades físicas lúdicas na rotina das crianças.

Porque no fim, como toda mãe sabe no fundo do peito, alimentar é mais do que dar comida: é cuidar, proteger e amar.

Publication date:
Author: Cláudia Regina dos Santos
Jornalista investigativa com mais de 20 anos de atuação, especializada em saúde e alimentação. Com estilo empático e engajado, destaca questões sociais e estruturais, especialmente ligadas à população negra e periférica. Usa linguagem próxima e acessível para humanizar dados e estatísticas.

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