Quando perder peso é questão de sobrevivência: obesidade e saúde pública nas favelas brasileiras

Quando perder peso é questão de sobrevivência: obesidade e saúde pública nas favelas brasileiras

Na peleja da vida nas favelas brasileiras, a luta contra a obesidade vai muito além da estética. Não é só sobre entrar naquela calça jeans guardada há anos no fundo do armário ou fazer bonito no verão. É, literalmente, questão de vida ou morte. Como mulher periférica, mãe solo e educadora popular, eu, Cláudia Regina dos Santos, conheço de perto a realidade de milhares de pessoas que, como eu, ouviram desde cedo que “gordo é saudável” — até o corpo pedir socorro e não restar mais dúvida: perder peso é sobreviver.

A balança como alerta: não é só sobre números

“Ah, mas é só um quilinho a mais.” Quem nunca ouviu isso? Pois bem, quando esse “quilinho” vira vinte, trinta, cinquenta… o corpo começa a gritar. Foi assim com o Rogério, morador da Vila Paciência, no subúrbio carioca. Aos 35 anos, pesando 143 quilos, não conseguia mais subir a ladeira pra pegar o ônibus. Era falta de ar, pressão altíssima e um medo constante de não ver os filhos crescerem.

O diagnóstico foi direto: obesidade grau III, hipertensão e pré-diabetes. E aí, minha gente, não teve outra: ou mudava tudo ou ficava pelo caminho. Rogério não teve o luxo de procurar clínica chique no Leblon. Foi no posto de saúde, foi no PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), foi com três amigas que montaram um grupo de caminhada na laje.

Obesidade nas favelas: um problema estrutural e silencioso

Antes que alguém pense que estamos falando de “falta de força de vontade”, deixa eu abrir sua mente com alguns dados reais. Segundo o Ministério da Saúde, mais da metade da população adulta brasileira está com excesso de peso — e a obesidade cresce mais rápido entre os mais pobres. Sabe por quê?

  • Alimentação ultraprocessada e barata: É mais fácil comprar um pacote de biscoito recheado por R$ 2,00 do que frutas frescas
  • Falta de acesso a espaços seguros para atividade física: Nem toda favela tem praça ou academia pública
  • Desigualdade no acesso à saúde preventiva: A fila do nutricionista no postinho é de meses
  • Stress contínuo e emocional abalado: Viver sob ameaça constante de violência, desemprego e pobreza afeta o corpo e a mente

Num cenário assim, o acúmulo de gordura corporal deixa de ser uma escolha e passa a ser reflexo da exclusão social.

Comida de verdade: privilégio ou direito?

Dona Sílvia, 52 anos, moradora de Maceió, foi diagnosticada com obesidade severa e diabetes tipo 2 em 2020. Desempregada, começou a cadastrar os netos no Auxílio Brasil e procurou ajuda no CRAS. A técnica assistente social que a atendeu explicou, didaticamente, como deveria se alimentar: “menina, come mais legume, salada crua, carne magra”. Era como pedir pra fazer suco de acerola em deserto: não tinha liquidificador, não tinha carne e não tinha legume.

Sílvia então começou a plantar cheiro verde, cebolinha e alface em garrafas PET. Foi se virando como podia. Com o tempo, descobriu uma associação de hortas comunitárias e passou a colaborar. O filho mais novo ajudava nos canteiros e, com a melhoria na alimentação, ela perdeu 18 quilos em um ano. Mas a batalha foi solitária.

Onde está a saúde pública nessa história?

A gente precisa parar de tratar a obesidade como falha individual. Enquanto um monte de gente acha que educação alimentar é vídeo no YouTube e salada no pote, nas favelas a conversa é outra. É saber que tem gente na fila do posto às 4h da manhã tentando um endocrinologista. É morar num barraco de dois cômodos com quatro pessoas e não ter onde cozinhar — a opção é sempre o salgado da padaria ou o churrasquinho da esquina.

Há avanços sim, como as políticas do Atenção Primária à Saúde, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) e a Estratégia Saúde da Família. Mas falta integração real com políticas urbanas de segurança alimentar, assistência social e educação para a autonomia.

Entre a gorda guerreira e a mulher invisível

Eu sei bem o que é não caber na cadeira do ônibus, ouvir piada no ponto de saúde por estar “acima do peso” e ainda ter que agradecer por ser atendida. A vivência de quem vive a obesidade nas periferias é marcada pelo preconceito, o descaso e a desinformação. A mulher negra gorda é vista como “forte”, como “resistente” — e por isso esquecem que ela também adoece, também precisa de cuidado e também tem direito ao prazer de sentir o próprio corpo leve e saudável.

Mas não vamos romantizar a resistência. Resistir, por vezes, é calar a dor. Por isso escrevo, denuncio e dou voz a quem não tem blog, nem cota nas universidades, nem médico de confiança. Quem tá vivendo na carne o peso de não caber na política pública.

O que precisa mudar

Se perder peso nas favelas é uma questão de sobrevivência, precisamos lutar por mudanças estruturais que tornem possível essa sobrevivência.

  1. Políticas públicas de segurança alimentar com foco nas periferias urbanas
  2. Incentivos ao cultivo de hortas comunitárias e feiras populares
  3. Ampliação real do acesso ao atendimento nutricional e endocrinológico no SUS
  4. Iniciativas culturais e educativas que combatam a gordofobia sem romantizar a desnutrição e o abandono
  5. Urbanização das favelas com espaços de lazer, mobilidade e atividades físicas gratuitas

Encerrando essa conversa com afeto e firmeza

Escrever esse texto é também um ato de cuidado coletivo. Perder peso, pra mim, foi poder correr atrás do ônibus sem sentir o coração sair pela boca. Foi poder brincar com meu filho sem achar que ia cair dura. Mas o que realmente me transformou foi entender que eu não era culpada por ter engordado num cenário que me empurra pra isso o tempo todo.

Se você é morador de favela, se olha no espelho e não reconhece mais o corpo pesado que carrega, saiba: você não está sozinho. A obesidade é uma ferida aberta num país desigual. Mas juntos, com afeto, denúncia e políticas assertivas, a gente pode tratar essa ferida — com saúde, com voz e com direito à vida plena.

Publication date:
Author: Cláudia Regina dos Santos
Jornalista investigativa com mais de 20 anos de atuação, especializada em saúde e alimentação. Com estilo empático e engajado, destaca questões sociais e estruturais, especialmente ligadas à população negra e periférica. Usa linguagem próxima e acessível para humanizar dados e estatísticas.

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